sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Pensamento de Ayn Rand

"Quando você perceber que, para produzir, precisa obter a autorização de quem não produz nada; quando comprovar que o dinheiro flui para quem negocia não com bens, mas com favores; quando perceber que muitos ficam ricos pelo suborno e por influência, mais que pelo trabalho, e que as leis não nos protegem deles, mas, pelo contrário, são eles que estão protegidos de você; quando perceber que a corrupção é recompensada, e a honestidade se converte em auto-sacrifício; então poderá afirmar, sem temor de errar, que sua sociedade está condenada".

Ayn Rand, filósofa russo-americana  (judia, fugitiva da revolução russa, que chegou aos Estados Unidos na metade da década de 1920)

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Consciência moral e agir comunicativo - Habermas

por Rosane da Conceição Pereira

O sociólogo e filósofo, Jürgen Habermas, propõe uma teoria da comunicação como uma teoria crítica da sociedade, de modo que a ação comunicativa entre os interlocutores sociais é analisada segundo suas relações. A teoria crítica da sociedade funcionaria como uma teoria do comportamento, uma propedêutica, um conjunto de regras morais para a vida, que afirmam a infra-estrutura da linguagem humana, do conhecer, do agir e da cultura (Habermas, 1989, p. 39). No interior dessa teoria crítica, o conceito agir comunicativo corresponde às "ações orientadas para o entendimento mútuo", em que o ator social inicia o processo circular da comunicação e é produto dos processos de socialização que o formam, em vista da compreensão mútua e consensual. Paralelamente, o conceito agir estratégico compreende as práticas individualistas em certas condições sociais, ou a utilização política de uma força, ou as "ações orientadas pelo interesse para o sucesso".
Habermas trabalha com o conceito "Diskurs" (Discurso) como uma forma de comunicação (Kommunikation) ou Rede (discurso, fala), que consiste na comunicação (fala ou discurso) destinada a fundamentar as pretensões de validade das afirmações e das normas nas quais se baseia implicitamente o agir comunicativo (interação social) – que é outra forma de comunicação (fala ou discurso). O sociólogo e filósofo defende o aspecto intersubjetivo do discurso (relação dialogal), além do aspecto lógico-argumentativo (explanação e discussão para a fundamentação das pretensões de validez problematizadas).
Há três contribuições à tese da consciência moral e do agir comunicativo, expressas por Habermas:
"A Filosofia como Guardador de Lugar e como Intérprete": investigações filosóficas e empíricas como as inspiradas na epistemologia genética de Jean Piaget (em psicologia). Para Habermas, mesmo quando a filosofia se dispensa dos papéis problemáticos de indicador de lugar e de juiz (perspectivas kantianas), ela pode e deve manter sua pretensão de razão (concordando com Kant) nas funções mais modestas de guardador de lugar dos saberes e como intérprete destes. Não é por menos que o sociólogo e filósofo chama o marxismo e a psicanálise, por exemplo, de pseudociências responsáveis por uma híbrida mistura dos Discursos normais com os patológicos – já que esses saberes não se conformariam à divisão de trabalho que proibe a inserção do elemento filosófico dentro das ciências propriamente ditas. Do ponto de vista da história das ciências e da psicologia genética de Piaget (para quem aprender é agir), o marxismo e a psicanálise caracterizariam exatamente os tipos de teorias que fundam novas tradições de pesquisa, considerando a inclusão filosófica na cooperação científica.
"Ciências Sociais Reconstrutivas versus Ciências Sociais Compreensivas": a teoria do desenvolvimento moral de Lawrence Kohlberg (em psiclogia) como modelo que explique claramente as relações entre reconstruções hipotéticas e explicações causais. Partindo da idéia de que as ciências sociais não devem abandonar a dimensão hermenêutica da pesquisa (papel de intérprete), Habermas distingue dois tipos de ciências sociais. As ciências sociais reconstrutivas correspondem àquelas que redistribuem o peso das construções normativas (judicativas, classificatórias) na história das ciências, com base em reconstruções hipotéticas para abordagens de maior sensibilidade hermenêutica – caso dos fundamentos da fenomenologia (segundo Wittgenstein), da hermenêutica filosófica e da teoria crítica. Enquanto as ciências sociais compreensivas remetem àquelas que interpretam as explicações causais, de maneira que os argumentos fundamentais da hermenêutica filosófica foram aceitos como paradigma, e não como doutrina, em outras ciências – caso da antropologia, da sociologia e da psicologia social. Esses dois tipos de ciências sociais são interpretados por três funções e dois usos da linguagem e/ou do Discurso no "mundo da vida" referido por Boaventura (*) – do "Lebenswelt", do senso comum ou das suposições e das práticas comuns. As três funções da linguagem e/ou do Discurso seriam: a reprodução cultural ou presentificação das tradições (caso da hermenêutica filosófica, de Gadamer); a integração social ou coordenação dos planos de diferentes atores na interação social (caso da teoria do agir comunicativo, de Habermas); e a socialização da interpretação cultural das necessidades humanas (caso da psicologia social, de G. H. Meado). Já os dois usos da linguagem e/ou do Discurso seriam: o uso cognitivo (dizer ou pensar algo a ser transmitido, informado) e o uso comunicativo (transmitir, informar algo dito ou pensado; solucionando o problema de adequar o pensamento relativo ao "mundo deontológico", do dever ser, aos estados de coisas relativos ao "mundo ontológico", do ser – questão da adequação do pensar e aprender com o agir). Kohlberg parece ter sido quem melhor tentou realizar essa conciliação entre pensar, aprender e agir, ou entre as ciências sociais, a hermenêutica e a filosofia. Mas, mesmo assim, Habermas critica a teoria kohlbergiana do desenvolvimento da consciência moral por ter a pretensão apriorística de reduzir a reconstrução racional às intuições morais (apenas filosóficas) e a análise empírica ao desenvolvimento moral (apenas psicológico). Habermas, então, acusa Kohlberg de ambigüidade, pois este não considera que as racionalidades filosófica e científica possuem sataus hipotético (são construções), e que a teoria-prática é compreendida (não se isola) no interior de ambas (filosofia e ciência).
"Notas Programáticas para a Fundamentação de uma Ética do Discurso": homenagem a Karl-Otto Apel, cujo objetivo é esclarecer o ponto de partida da ética do Discurso. Primeiramente, Habermas faz duas considerações propedêuticas acerca da ética do Discurso. A propósito da fenomenologia do fato moral: a validez deôntica (dos deveres ou ciência da moral) das normas e as pretensões de validez que erguemos com atos de fala ligados às normas (atos regulativos) constituem os fenômenos que uma ética filosófica tem que explicar. E as abordagens objetivistas e subjetivistas da ética: as posições filosóficas conhecidas, a saber, as teorias definidoras de gênero metafísico e as éticas institucionalistas do valor, por um lado, e as teorias não-cognitivistas como o emotivismo e o decisionismo, por outro lado, não dão conta dos fenômenos que precisam de explicação – pois assimilam as proposições normativas ao modelo errôneo das valorações e das proposições descritivas ou da vida, imperativas e intencionais. Em seguida, Habermas faz três advertências acerca do princípio da universalização como regra de argumentação, para a ética do Discurso. As pretensões de validez assertórias e normativas no agir comunicativo: os fenômenos morais denunciam uma investigação formal pragmática do agir comunicativo, em vista de um princípio moral ou de um critério universal de interação social. O princípio moral ou o critério da universalização de máximas de ação: o agir comunicativo consiste na orientação dos atores sociais por pretensões de validez para todos os envolvidos. E a argumentação versus participação – um excurso (digressão, divagação): a ética filosófica do Discurso pode assumir a figura de uma teoria especial da argumentação, diferentemente da teoria do conhecimento. Por fim, Habermas faz três observações acerca da ética do Discurso e seus fundamentos na teoria da ação. Questiona se é necessária e possível uma fundamentação do princípio moral e afirma que sim, pois a fundamentação da teoria moral concerniria ao princípio de universalização dos saberes – o único princípio a possibilitar nas questões práticas (da moral e da política) um acordo argumentativo – e à tentativa de mostrar como esse princípio pode ter uma fundamentação transcendental através da ética do Discurso – a partir das pressuposições pragmáticas universais de uma argumentação consensual, segundo Apel. Explana a estrutura e valor posicional do argumento pragmático-transcendental: a "derivação" (do argumento pragmático-transcendental para a ética do Discurso) não pode pretender o status de uma fundamentação última, pois o argumento pragmático-transcendental proposto por Apel seria fraco ainda para quebrar a resistência cética a qualquer forma de moral racional plenamente universal – crítica ao descolamento empírico do contexto interno da teoria do agir comunicativo. E propõe, enfim, a relação entre moralidade e eticidade: o problema da resistência cética a qualquer forma de moral racional e universal implica o retorno de Habermas à crítica hegeliana quanto à moral kantiana, ou seja, implica substituir o modo de fundamentação transcendental da razão como fim moral pelo modo modo dialético da razão como meio ético. Substituição que, conforme Habermas, daria ao primado da eticidade perante a moralidade um sentido imune às tentativas de ideologização neo-aristotélicas (essencialistas ou não construtivistas) e mesmo neo-hegelianas (negativistas ou pelas verdades encobertas e não histórico-socialmente construídas).
Em conformidade com suas contribuições fundamentais, a tese de "Consciência Moral e Agir Comunicativo" abrange conceitos elementares, como: o princípio de universalização (U), uma regra de argumentação geral, a ética do Discurso e a teoria do desenvolvimento da consciência moral, formulada por Kohlberg.
O princípio de universalização é introduzido como regra de argumentação para os Discursos práticos (filosofia e sociologia), pois esse princípio pode ser compreendido como uma reconstrução das intuições da vida cotidiana que sustentariam uma avaliação imparcial dos conflitos de ação morais (modelo "reflective equilibrium", de Rawls). Enquanto a regra de argumentação é fundamentada a partir dos pressupostos pragmáticos da argumentação em geral, juntamente com a explicitação do sentido das pretensões de validez normativas, ou seja, a validez universal do princípio de universalização ultrapassa a perspectiva de uma cultura determinada, baseando-se na comprovação pragmático-transcendental de pressupostos universais e necessários de argumentação. Esses argumentos sustentam apenas a circunstância de que não há nenhuma alternativa identificável para a "nossa" maneira de argumentar, de modo que a ética do Discurso também se apóia, como as ciências sociais reconstrutivas, exclusivamente em reconstruções hipotéticas, para as quais temos que buscar confirmações plausíveis, em concorrência como outras teorias das quais depende a sua confirmação indireta. E a teoria do desenvolvimento da consciência moral humana, formulada por Kohlberg, oferece esta confirmação indireta à teoria da ética do Discurso, de Habermas: o desenvolvimento da capacidade de julgar (moral) efetuaria-se da infância à idade adulta, passando pela adolescência, de acordo com um modelo invariante, que é um princípio de universalização, o ponto de referência normativo da via evolutiva do Discurso na argumentação humana – certo reducionismo a um fisiologismo ancorado em um padrão fixo, restritivo. Assim, qualquer comportamento diferente do padrão seria explicado, segundo Habermas, como uma ação motivada inconscientemente, não confessada pelo ator social a si e aos demais, entre seu agir estratégico (individualista) e seu agir comunicativo (universalista). Esse efeito de auto-engano ou ato de defesa seria interpretado, então, como um distúrbio intrapsíquico da comunicação, distorcida de maneira sistemática em um plano interpessoal e intrapsíquico. É para uma tal comunicação distorcida que Habermas sugere uma discussão específica dentro da teoria da comunicação.
De acordo com Habermas, a consciência moral (a racionalização universal dos modos de viver humanos) viabiliza a aplicação inteligente de discernimentos morais universais. Aplicação que se daria através do agir comunicativo, com a compreensão mútua e consensual entre os atores sociais (como supostamente ocorreria no meio acadêmico universitário), ainda que essa perspectiva seja, no melhor dos casos, utópica.
 

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Pensamento e Revolta: O Engajamento Político em tempos de Alienação Pessimismo

por Paulo Jonas de Lima Piva

A alienação e o pessimismo são dois componentes preponderantes na atual conjuntura brasileira, o que torna o nosso contexto histórico bastante desanimador do ponto de vista do engajamento político. Como ser um filósofo consciente e engajado num Brasil frustrado com os mensalões e com a resignação neoliberal do governo Lula e do principal partido da esquerda, o PT? O conceito de revolta de Albert Camus, a fórmula do “agir sem esperança”, de Jean-Paul Sartre, e a palavra de ordem gramsciana “pessimismo da inteligência, otimismo da vontade” talvez lancem alguma luz sobre essa questão ética crucial para os pensadores que não se satisfazem com a reflexão e a crítica desvencilhadas de uma práxis transformadora.
De um encontro que tem como tema “Filosofia e Engajamento”  deveríamos esperar um formato e um conteúdo diferentes das corriqueiras reuniões acadêmicas da comunidade filosófica brasileira. Em vez das enfadonhas comunicações e palestras exegéticas centradas na história da filosofia, marcadas geralmente por técnicas e herméticas exposições sobre a “rebimboca da parafuseta” no livro X, parágrafo Y, do célebre Fulano de Tal que viveu no século Z, o anúncio de um evento dessa natureza gera a expectativa em alguns de que os eixos dos debates serão os diagnósticos de conjuntura voltados para propostas de intervenções na realidade. Portanto, tratar-se-ia de um encontro sobre a filosofia da práxis.
E qual deveria ser o objetivo principal de um encontro sobre filosofia da práxis? Em termos sartreanos, abordar e analisar o “homem real no meio do mundo real” (SARTRE, 1960, p.30). Assim sendo, esse encontro deveria privilegiar não a história da filosofia, mas sim o hic et nunc, o vir a ser da nossa efetividade.   
Mas o que seria um homem real imerso num mundo real? O que está por detrás dessa pretensão de um pensamento que deseja interpretar a realidade para transformá-la?
Num primeiro momento, pensar “o homem real no meio do mundo real” significa pensar um indivíduo de carne e osso, classe social e RG, situado num determinado momento histórico em uma certa localização geográfica e cultural. E como hoje nos encontramos reunidos em Curitiba, em 25 de novembro de 2005, pensarmos esse homem real imerso num mundo real é concebermos o homem concreto e cotidiano numa condição de mercado sem rédeas, de ofensiva do imperialismo norte americano, de frustração com as mudanças radicais que o governo Lula não realizou, de falência do PT, de poder inimaginável da mídia, de forte presença do narcotráfico na sociedade, de histeria futebolística e sexual, de epidemia neopentecostal e carismática, de “ONGuização” das mazelas sociais, entre outros componentes da realidade não contemplados pela nossa filosofia universitária de departamento francês de ultramar. Por outro lado é pensarmos também esse mesmo indivíduo inserido num contexto de resistência promovida pelo nacionalismo de Hugo Chavez na Venezuela, por exemplo, ou de consolidação do MST como referência de movimento popular combativo. A propósito, a experiência de nosso convívio acadêmico configurado conforme os moldes goldschmidtiano e gueroultiano tem nos ensinado que história da filosofia demais aliena. Poderíamos dizer, num certo sentido, que a dedicação exclusiva à pesquisa e ao ensino de filosofia entendida unicamente como história da filosofia, isso faz mal à compreensão da realidade. E alienação aqui entendamos na sua acepção mais elementar, ou seja, de perda da consciência da realidade social, política e econômica do momento em que se vive.
Todos nós, filósofos profissionais, já parimos ou estamos gerando dissertações ou teses. E conhecemos, portanto, os limites e os sacrifícios que tal trabalho impõe e exige. É comum encontrarmos colegas que são grandes eruditos em Aristóteles, Espinosa, Kant, Nietzsche e até no próprio marxismo, que conhecem quase tudo o que os seus principais comentadores publicaram. Contudo, quando lhes indagamos acerca de qualquer fato concernente ao homem real imerso no mundo real, simplesmente eles não demonstram em suas respostas o mesmo brilho com que tratam os seus objetos de pesquisa. Tecem considerações não mais críticas ou menos superficiais do que diria uma pessoa do chamado “senso comum”. Em alguns casos, a alienação de nossos colegas – chamo isso de alienação filosófica – que se reificaram com a mecânica e burocrática vida acadêmica ou se resignaram ao modelo e ao ditame goldschmidtiano de que só podemos nos contentar com a condição de historiadores da filosofia, de que para filosofar é necessário que sejamos quase que superdotados, a alienação desses nossos colegas especialistas é tanta que, se lhes perguntarmos, por exemplo, o que estão achando do comportamento de Chavez na Venezuela, é possível que este seja confundido com o personagem mexicano do seriado infantil da emissora de tevê de Silvio Santos! Parafraseando um certo best-seller da era Jostein Gardeen, talvez precisemos de menos Crítica da razão pura e Assim falou Zaratrusta e mais Caros Amigos e Brasil de Fato. Dito de outro modo, não podemos esquecer que muitos de nós somos professores universitários de filosofia. E se quisermos de fato ser intelectuais engajados, de fazermos valer o vínculo entre filosofia e atitude, é necessário iniciarmos uma mudança significativa já pelas nossas próprias posturas acadêmicas.
É óbvio que o estudo sério e consistente da história da filosofia é fundamental. Não se trata aqui em absoluto de preconizar o abandono e o combate ao estudo sistemático da história da filosofia. Entretanto, não podemos reduzir a nossa reflexão a comentários e exegeses de obras. Felizmente, muitos entre nós estão rompendo o cerco da “comentariologia” .  É o caso de Paulo Eduardo Arantes - autor dos quase indecifráveis Dicionário de bolso do almanaque philosophico zero à esquerda e de Zero à esquerda, uma compilação de ensaios lançado pela coleção “Baderna” _ e Marilena Chauí. Esta, como sabemos, não se limitou a comentar Merleau Ponty e Espinosa. Recentemente, pagou caro por isso no episódio covarde do “silêncio dos intelectuais” alimentado pela grande imprensa conservadora em meio às denúncias contra o governo Lula. Trata-se, sem dúvida, de dois intelectuais rigorosamente engajados. Paulo Arantes, por exemplo, participou ativamente da fundação do PSOL, o mais novo partido da esquerda revolucionária brasileira. Quanto a Marilena Chauí, sua história como teórica do PT é notória.
Livrarmos-nos dessa ideologia estruturalista é um passo importante para que se torne um pouco mais palpável nos dias de hoje esse personagem de características quixotescas que é o intelectual engajado. Outra medida necessária para facilitar a entrada desse personagem no cotidiano dos injustiçados e oprimidos é a mudança da linguagem por meio do qual o pensamento crítico é expresso. Para elevarmos as consciências das massas é preciso antes sermos ouvidos e sobretudo entendidos. E para que essa regra básica do intelectual engajado seja cumprida, nada melhor do que o filósofo abandonar o “filosofês”. Diderot  e Voltaire fizeram isso no século XVIII escrevendo romances, contos e peças teatrais com uma linguagem próxima dos mercados e tavernas. Marx e Sartre são exemplos mais recentes de como é possível filosofar para o grande público, isto é, com clareza e ao mesmo tempo mantendo o rigor do pensamento. Nesse aspecto, O Manifesto do Partido Comunista e O existencialismo é um humanismo são modelares. No caso de Sartre, em específico, poderíamos dizer dele acerca do seu romance filosófico A náusea, bem como de suas conferências no Japão intituladas Em defesa dos intelectuais. Em suma, o projeto de uma filosofia engajada só faz sentido se o filósofo dialogar com as massas, portanto, ser entendido e interagir com interlocutores para além dos guetos de especialistas. Para isso, adequar o dialeto filosófico ao mundo dos não-filósofos é vital.
Mas não basta mudarmos nossa atitude em relação à tradição estruturalista e à linguagem técnica arrevesada. Um dos maiores empecilhos ao engajamento do filósofo talvez seja o preconceito aristocrático de nossa categoria, ou seja, a idéia de que a filosofia tem de ser tratada só por técnicos e especialistas, e guardada numa redoma institucional para protegê-la do risco da deturpação, da banalização e da massificação, como sustentam alguns cães de guarda. Enfim, os espaços para aproximar a reflexão crítica do povo, ou seja, aproximar a filosofia de uma práxis potencial, existem, e cabe a nós, filósofos que desejam se engajar, tirarmos proveito disso tendo em vista a nossa causa libertária. O que não é mais aceitável é nos satisfazermos com encontros acadêmicos anuais sobre filosofia...
Penetremos agora na nebulosa e desanimadora conjuntura política deste mundo real no qual os cafés filosóficos e as casas do saber estão na moda. E façamos isso com uma indagação que deveria estar na ordem do dia: a quem interessa o discurso do pessimismo político? Esta pergunta, aliás, foi sugerida pelo jornalista José Arbex Junior num artigo da edição de número 103, da revista Caros Amigos intitulado “Deixemos o pessimismo para dias melhores”. E o que diz e em que consiste concretamente o discurso do pessimismo político? Trata-se da avaliação reducionista e simplista de que “político é tudo igual”, que “partido político é tudo a mesma coisa”, que “o poder corrompe”, enfim, que “o jogo político é assim mesmo, sempre foi, e jamais será diferente”. Tal discurso, é importante notar, vem sendo endossado, ora de maneira implícita, ora escancarada, pela grande mídia burguesa. E, como sabemos, essa difusão do pessimismo em relação à prática política desses órgãos da imprensa-empresa não é gratuita. Contudo, razões para aceitar esse discurso, infelizmente, existem aos montes. Por exemplo, que não há mais o sol flamejante da messiânica revolução proletária e socialista no horizonte da história; que o governo Lula, uma das últimas esperanças do processo democrático brasileiro, está sendo um fiasco e, por conseguinte, uma desastrosa decepção para grande parte dos trabalhadores brasileiros; que os valores neoliberais estão cada vez mais intoxicando via aparelhos ideológicos as consciências das massas; que essas massas sem perspectivas e desesperadas estão encontrando na religião e em doutrinas equivalentes um anestésico para suas angústias; que fóruns sociais mundiais são organizados e nada de prático acontece para reverter os lamentáveis quadros de miséria e marginalidade. Em suma, não dá prá não ser pessimista nos dias de hoje. Pessimismo na atual conjuntura soa como sinônimo de realismo e lucidez. E mesmo com a existência do MST, dos fóruns sociais, dos zapatistas e até mesmo de líderes como Hugo Chavez. O fato é que quem ganha com o pessimismo são sem dúvida os setores reacionários da sociedade. Portanto, trata-se de uma ideologia conservadora que precisa ser combatida, porém não com um otimismo visionário e messiânico, mas por um pensamento radical e lúcido.
Dentre as inúmeras razões que justificam o pessimismo em relação à política uma delas pode ser o apelo à esperança das massas, expediente, aliás, muito utilizado historicamente também pela esquerda. Trata-se decerto de uma energia vital para a mobilização e o enfrentamento político. Ora, a esperança é em grande medida um sentimento similar ao sentimento religioso, uma vez que envolve a fé e induz à ilusão do absoluto e do paraíso na Terra. Assim sendo, por mais paradoxal que pareça, a esperança não deve ser evocada para fomentar a ação política. A esperança, quando não realizada, torna-se frustração. E o que era vigor e ânimo converte-se em apatia. Do ponto de vista ideológico e político, tal fenômeno é desastroso, uma vez que afeta e mina mortalmente a mobilização e a organização dos setores explorados, que são os atores sociais que mais necessitam da ação política. A propósito, um engajamento político lúcido, isto é, sem ser movido pela esperança, seria viável? Uma militância política fundamentada num sólido compromisso ético que supere a tentação pessimista sem se deixar levar pelas ilusões ingênuas do otimismo humanista seria exeqüível?
Sartre, em 1945, na sua célebre conferência O Existencialismo é um humanismo, propôs uma fórmula que vai ao encontro – e de maneira muito persuasiva – a essa idéia de engajamento político lúcido. Trata-se da fórmula “agir sem esperança” (SARTRE, 1978, p.12), uma espécie de imperativo categórico existencialista do filósofo engajado. Sartre a explica: “Antes de mais, devo ligar-me por um compromisso e agir depois segundo a velha fórmula ‘para se atuar dispensa-se a esperança’. Não que isto quer dizer que eu não deva pertencer a um partido, mas que não terei ilusões e que farei o que puder. Por exemplo, se me pergunto: a coletivização enquanto tal realizar-se-á um dia? Sobre isso não sei nada, sei apenas que tudo o que estiver ao meu alcance para se realizar fá-lo-ei; fora disso, não posso confiar em nada (idem 1978,p.13).
Dito de outro modo, nesse engajamento político lúcido o filósofo substitui a esperança por um dever humanista, a fé e um sentimento por uma norma racional. Ele fará tudo o que estiver ao seu alcance conforme esse imperativo e impelido pela sua sensibilidade e seus valores. Não mais por ilusões engendradas pela esperança. Se por ventura, tudo o que este militante almeja fora alcançado, comemora-se; caso não se realize, não haverá decepções, abalos, tampouco desânimos, mas uma continuidade da luta. Tal raciocínio parece inteiramente compatível com a ética revolucionária expressa por Antônio Gramsci na seguinte e não menos modelar frase: “A palavra de ordem ‘pessimismo da inteligência e otimismo da vontade’ deve ser a palavra de ordem de todo comunista consciente” (Apud COUTINHO, 2000, p.7).
Em última instância, para um filósofo engajado com tais características o que importa é agir, intervir no processo histórico sem nada esperar. Assim sendo, a ação política com seus valores humanistas inerentes será um fim em si mesmo.
Referências:

ARBEX J., Deixemos o pessimismo para dias melhores. Caros Amigos, São Paulo, n. 103, p.14, out.2005.

CAMUS, A. O homem revoltado. Tradução de Valérie Rumjanek. Rio de Janeiro, RJ: Record, 1999

CIORAN, E. Silogismos da Amargura. Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

COUTINHO, C.N. Contra a Corrente: ensaios sobre a democracia e socialismo. São Paulo: Cortez, 2000.

PALÁCIOS, G.A. De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio. Goiânia: UFG, 2004.

SARTE, J.P. O existencialismo é um humanismo. Tradução de Virgílio Ferreira. São Paulo, SP: Abril, 1978.

________, Critique de La raison dialectique. Paris: Gallimard, 1960.


Leviatã - Thomas Hobbes

Introdução
Em que Hobbes compara o corpo político com o corpo humano e o Estado — a Comunidade Política, O Leviatã — com um homem, um corpo humano, artificial. Nesse corpo, a sedição é como que uma doença, e a  guerra civil como a morte. E termina por nos dizer que somente por um auto-exame, olhando dentro de nós mesmos para julgar nossos pensamentos e paixões, que estão na base das ações de todos os homens, podemos avaliar o que há de verdadeiro em suas idéias
Da mesma forma que tantas outras, a natureza, mediante a qual Deus fez e governa o mundo, é imitada pela arte humana também nisso: é possível fazer um animal artificial. Sendo a vida nada mais que um movimento de membros, cujo início ocorre em alguma parte interna, por que não poderíamos dizer que todos os autômatos (máquinas que se movem a si mesmas por meio de molas, como um relógio) possuem vida artificial?
A arte vai mais longe, imitando a criatura racional, a mais excelente obra da natureza, o Homem. Porque, pela arte, é criado aquele grande Leviatã a que se chama Estado ou Corpo Político, Commonwealth (do latim Civitas), que nada mais é que um homem artificial, de maior estatura e força do que o homem natural, para cuja proteção e defesa foi projetado.
No Corpo Político, a soberania é uma alma artificial, pois dá vida e movimento a todo o corpo; os magistrados e outros funcionários judiciais ou executivos, juntas artificiais; a recompensa e o castigo (pelos quais, ligados ao trono da soberania, juntas e membros são levados a cumprir seu dever) são os nervos que executam a mesma função no corpo natural; a riqueza e a prosperidade de todos os membros individuais constituem a força; Salus Populi (a segurança do povo) é seu objetivo; os conselheiros, por meio dos quais todas as coisas necessárias lhe são sugeridas, são a memória; a justiça e as leis, razão e vontade artificiais; a concórdia é a saúde; a sedição é a doença; a guerra civil é a morte. Finalmente, os pactos e convenções pelos quais as partes deste Corpo Político foram criadas, reunidas e unificadas assemelham-se àquele Fiat, ao “Façamos o homem” proferido por Deus na Criação.
A fim de descrever a natureza desse homem artificial, examinarei primeiro sua matéria e seu artífice, os quais são o homem. Segundo, como e por meio de que convenções (covenants) é feito; quais são os direitos e o justo poder ou autoridade do soberano; e o que o preserva e o desagrada. Terceiro, o que é o Estado Cristão. Quarto, o que é o Reino das Trevas [por razão de espaço, as duas últimas partes não são sumariadas aqui].
Com relação ao primeiro aspecto, às vezes descobrimos que os homens poderiam verdadeiramente aprender a conhecerem-se uns aos outros, caso se dessem ao trabalho de fazê-lo: isto é, nosce te ipsum, conhece-te a ti mesmo. Refiro-me à semelhança das paixões, que se igualam em todos os homens, em idênticas circunstâncias, tais como o desejo, o medo ou a esperança.
Quem vai governar uma nação deve compreender não este ou aquele indivíduo em particular, mas o gênero humano. O que é coisa difícil, mais ainda do que aprender qualquer língua ou qualquer ciência, mas, ainda assim, depois de eu ter exposto claramente e de maneira ordenada minha própria leitura, o trabalho que caberá a outros será o de verificar se não encontram o mesmo em si mesmos, já que esta espécie de doutrina não admite outra demonstração.

Parte I - A Respeito do Homem

Em que Hobbes aplica o método newtoniano para explicar a natureza humana e nos fala dos fenômenos psicológicos — emoções, pensamentos e seqüências de raciocínio — como produtos de interações mecânicas. A importância de uma “cabeça” que decida a maior parte das coisas importantes que o “corpo” faz 

Capítulo 1 - Sobre a sensação

Para Hobbes todo o conhecimento do homem se origina nas sensações

Isoladamente, cada um dos pensamentos do homem é uma representação ou aparência de alguma qualidade ou outro acidente de um corpo exterior a nós, um objeto. Esse objeto atua sobre nossos sentidos, produzindo aparências diversas.
Todas elas se originam no que denominamos sensação, já que não há nenhuma concepção no espírito do homem que não tenha tido origem nos órgãos dos sentidos. O motivo da sensação é o corpo exterior, ou objeto.

Capítulo 2 - Sobre a imaginação

Todas as qualidades sensíveis são movimentos que são percebidos pelo observador. Por oposição a Aristóteles, a mente é uma tabula rasa. A imaginação como sensação diminuída. Os sonhos e o entendimento

Um corpo em movimento move-se eternamente (a menos que algo o impeça), e seja o que for que o faça, não o pode extinguir totalmente num só instante, mas apenas com o tempo e gradualmente. O mesmo acontece no movimento que se observa nas partes internas do homem, quando vê ou sonha, já que após a desaparição do objeto conservamos ainda a imagem vista. É a isso que os latinos chamam de imaginação, por causa da imagem criada pela visão, e os gregos designam por fantasia, que significa aparência. A imaginação, portanto, é uma sensação diminuída.
O acúmulo de memória chama-se experiência e diz respeito apenas àquelas coisas que foram anteriormente percebidas pela sensação. Os devaneios dos que estão adormecidos denominam-se sonhos. Esses devaneios também estiveram anteriormente na sensação. 
A ignorância para [incapacidade de] distinguir sonhos de outras ilusões fortes, a visão e a sensação, fez surgir, no passado, a maior parte das religiões dos gentios e, hodiernamente, a opinião que a gente simples tem das fadas, fantasmas e gnomos, e do poder das feiticeiras.
Homens perversos levam a sua ousadia a ponto de afirmar o que lhes convém, muito embora saibam que é mentira. Cabe ao homem sensato só acreditar no que a razão lhe aponta como crível. Caso desaparecesse esse temor supersticioso dos espíritos, graças às quais as pessoas ambiciosas e astutas abusam da credulidade da gente simples, os homens estariam mais bem preparados para a obediência civil.
Entendimento (understanding) é o resultado da linguagem (palavras) ou de quaisquer outros símbolos (“sinais voluntários”) que dão lugar a representações mentais (imaginação).

Capítulo 3 - Sobre a conseqüência ou cadeia de imaginações

Em que Hobbes trata da cadeia de imaginações (pensamentos),
da lembrança, da prudência e da conjetura dos tempos passados

Discurso mental, ou cadeia de pensamentos, é uma sucessão de pensamentos (isto é, uma sucessão de imaginações) e é distinto do discurso em palavras. Essas cadeias de pensamento estão relacionadas por meio de associações de sensações passadas de movimentos.
As cadeias de pensamentos são ou desreguladas, quando livres e inconstantes, despreocupadas, ou reguladas por algum desejo ou desígnio (ligado a um fim). Do desejo a mente produz uma sucessão de imaginações (pensamentos) dos meios necessários para atingir o fim que almejamos.
Há dois tipos de pensamentos regulados. O primeiro busca conhecer as causas de uma ocorrência; o outro procura descobrir os possíveis efeitos de uma ação. Ao primeiro tipo de pensamento se chama previsão, prudência ou providência, e algumas vezes sabedoria. Quanto mais experiente for um homem nas coisas passadas, tanto mais prudente será em suas previsões. Contudo, da mesma forma que somente o presente existe, pois que as coisas passadas têm existência apenas na memória, as coisas que estão para vir não têm existência alguma, sendo o futuro apenas uma ficção do espírito. Previsões, portanto, não passam de suposições.
Isso constitui a operação básica da mente. Todas as demais atividades são baseadas na sensação e na imaginação. Elas são adquiridas e aperfeiçoadas com a prática e o uso da linguagem.

Capítulo 4 - Sobre a linguagem

Em que Hobbes trata da origem da linguagem, seu uso e abuso. Trata também dos universais e  da necessidade de definições, e daí para o entendimento

A mais importante e útil de todas as invenções foi a da linguagem, que consiste em nomes ou marcas e em suas conexões, pelas quais os homens dão significado às coisas, registram seus pensamentos, os recordam posteriormente e também os usam entre si para fins úteis e conversas recíprocas, sem o que não haveria entre os homens Estado, sociedade, contrato e paz.
Os usos especiais da linguagem são os seguintes: representar uma cadeia de pensamento; comunicar essa cadeia de pensamento; comunicar aos outros nossos desejos e objetivos; e para agradar e para nos deliciar, e aos outros, jogando com as palavras, por prazer e ornamento, de maneira inocente.
Os abusos da linguagem incluem o registro errôneo de seus pensamentos; o engano, pelo uso metafórico da linguagem; quando por palavras declaram ser sua vontade aquilo que não é; e quando a usam para se ofender uns aos outros.
Alguns nomes são próprios e singulares a uma só pessoa ou coisa, como João ou esta árvore; e alguns são comuns a um tipo geral de pessoas ou coisas, como homem ou árvore, às quais em conjunto se denomina um universal.
Verdadeiro e falso são atributos da linguagem, não das coisas. Onde não houver linguagem, não há nem verdade nem falsidade. Pode haver apenas erro. Portanto, a verdade consiste na adequada ordenação de nomes (palavras) em nossas afirmações. Por essa razão, é importante estabelecer o significado das palavras. A esse estabelecimento preciso de significações chamam-se definições.
Quando ao ouvir qualquer discurso um homem tem aqueles pensamentos nos quais as palavras desse discurso e sua conexão foram ordenadas e constituídas, então dizemos que ele o compreendeu, não sendo o entendimento outra coisa senão a concepção causada pelo discurso.
São de significado inconstante nos discursos dos homens os nomes daquelas coisas que nos afetam, isto é, que nos agradam e desagradam, porque todos os homens não são igualmente afetados pelas mesmas coisas, nem o mesmo homem em todos os momentos. Nomes como sabedoria, medo, crueldade e justiça não são elementos de um raciocínio apropriado. 

Capítulo 5 - Sobre a razão e a ciência

Hobbes nos fala a seguir da razão e de seu uso. Do erro e do absurdo

Razão nada mais é que o cálculo, isto é, adição e subtração, com nomes gerais (palavras) com o objetivo de marcar e dar significado aos nossos pensamentos. O uso e a finalidade da razão é proceder do exame de cada uma das etapas de uma seqüência, até a última.
Não pode haver certeza da última conclusão sem a certeza de todas aquelas afirmações e negações nas quais se baseou e das quais foi inferida. Aquele que tira conclusões confiando em autores e não as examina desde os primeiros itens de cada cálculo – os quais são as significações de nomes estabelecidas por definições – perde o seu esforço e nada fica sabendo; apenas julga que sabe.
Quando alguém calcula sem o uso de palavras e aquilo que julgou provável que se seguisse não se segue, ou se aquilo que julgou provável que tivesse precedido não tiver precedido, a isso se chama de erro, ao qual estão sujeitos mesmo os homens mais prudentes. Mas quando raciocinamos com palavras de significação geral e chegamos a uma inferência geral que é falsa, muito embora seja comumente denominada erro, é na verdade um absurdo, um discurso sem sentido.
Depreende-se daí que a razão não nasce conosco, como a sensação e a memória, nem é adquirida apenas pela experiência, como a prudência, mas obtida com esforço, primeiro por meio de uma adequada imposição de nomes e, em segundo lugar, por intermédio de um método bom e ordenado de passar dos elementos, que são nomes, a asserções feitas por conexão de um deles com o outro e daí para os silogismos, que são as conexões de uma asserção com outra, até chegar ao conhecimento de todas as conseqüências de nomes referentes ao assunto em questão. A isso os homens chamam ciência.
Enquanto a sensação e a memória — isto é, a história — são apenas conhecimento de fato, o que é uma coisa passada e irrevogável, a ciência é o conhecimento das conseqüências e a dependência de um fato em relação a outro.
Para finalizar, a luz dos espíritos humanos são as palavras claras, meridianas, mas principalmente limpas por meio de exatas definições e purgadas de toda ambigüidade. E em qualquer assunto em que o homem não tenha uma ciência infalível pela qual se guiar é sinal de loucura abandonar o próprio juízo natural para se deixar conduzir por sentenças gerais lidas em autores e sujeitas a muitas exceções.

Capítulo 6 - Sobre a origem interna dos movimentos voluntários chamados paixões e a linguagem que os exprime

Movimento vital e voluntário. Desejo e aversão. Deliberação e  ato de vontade. Felicidade

Há nos animais dois tipos de movimentos que lhes são próprios. Um deles se chama vital; começa com a geração e continua sem interrupção durante toda a vida, como a circulação do sangue. Independe do pensamento. O outro tipo, também chamado de movimentos voluntários, como andar e falar, depende do pensamento e começa com a imaginação.
Quando vai em direção de algo que o causa, esse esforço chama-se apetite ou desejo. Quando o esforço vai no sentido de evitar alguma coisa chama-se geralmente aversão. Apetite e aversão são palavras que vêm do latim, e ambas designam movimentos, um de aproximação e outro de afastamento.
Seja qual for o objeto do apetite ou desejo de qualquer homem, esse objeto é aquele a que cada um chama bom; ao objeto de seu ódio e aversão chama mau, e ao de seu desprezo chama vil ou indigno. Pois as palavras “bom”, “mau” e “desprezível” são sempre usadas em relação à pessoa que as usa. Não há nada que o seja simples e absolutamente (o que é bom ou mau), nem há qualquer regra que possa ser extraída da natureza dos próprios objetos. Ela só pode ser tirada da pessoa que representa cada um; ou também de um árbitro ou juiz que pessoas discordantes possam instituir por consentimento, concordando que sua sentença seja aceita como regra.
Aquilo que realmente está dentro de nós é apenas movimento, tal como na sensação, provocado pela ação dos objetos externos, mas em aparência. A aparência ou sensação desse movimento é o que se chama deleite, ou então perturbação do espírito.
O prazer ou deleite, portanto, é a sensação do bem, e desprazer ou desagrado é a sensação ou aparência do mal.
Chama-se deliberação todo o conjunto de desejos, aversões, esperanças e medos que se vão desenrolando até que a ação seja praticada  ou considerada impossível, quando surgem alternadamente no espírito humano apetites e aversões, esperanças e medos relativamente a uma mesma coisa; quando passam sucessivamente pelo pensamento as diversas conseqüências boas ou más de uma ação, ou de evitar uma ação; de tal modo que às vezes se sente um apetite em relação a ela e às vezes uma aversão, às vezes a esperança de ser capaz de praticá-la e às vezes o desespero ou medo de empreendê-la.
Diz-se que toda deliberação chega ao fim quando aquilo sobre o que se deliberava foi feito ou considerado impossível, pois até esse momento conserva-se a liberdade de fazê-lo ou evitá-lo, de conformidade com os próprios apetites e aversões.
Na deliberação, o último apetite ou aversão imediatamente anterior à ação ou à omissão desta é o que se chama o ato de vontade, não a faculdade de querer. Quem possuir, graças à experiência ou à razão, a maior e mais segura capacidade de prever as conseqüências é quem melhor é capaz de deliberar. Quem mais é capaz, quando quer, de dar aos outros os melhores conselhos, o sucesso contínuo na obtenção daquelas coisas que de tempos em tempos os homens desejam, quer dizer, o prosperar constante, é aquilo que os homens chamam felicidade.

Capítulo 10 - Sobre poder, valor, dignidade, honra e merecimento

Poder natural e instrumental. Valor e dignidade

Universalmente considerado, o poder consiste nos meios de que presentemente se dispõe para obter qualquer bem futuro visível.
Poder natural é o que reside nas faculdades do corpo ou do espírito. Os poderes instrumentais são os que se adquirem mediante os anteriores ou pelo acaso e constituem meios e instrumentos para se adquirir mais [poder].
Dos poderes humanos o maior é aquele que é composto pelos poderes de vários homens, unidos por consentimento numa só pessoa, natural ou civil, que tem o uso de todos os seus poderes na dependência de sua vontade. Há várias formas de poder. A riqueza, porque consegue amigos e servidores; a reputação do poder, pois com ela se consegue a adesão daqueles que necessitam proteção; também o é a reputação de amor da nação de um homem, a qual se chama popularidade; também o sucesso, porque traz reputação de sabedoria ou boa sorte, o que faz os homens recearem ou confiarem em quem o consegue. Aumenta o poder a afabilidade dos homens que já estão no poder, porque atrai amor. A reputação de prudência é poder, porque confiamos o governo de nós mesmos de melhor grado aos homens prudentes do que aos outros. Constitui poder a nobreza naqueles Estados onde goza de privilégios, pois é nesses privilégios que consiste seu poder. A eloqüência é poder, porque se assemelha à prudência. É poder a beleza, já que recomenda os homens ao favor das mulheres e dos estranhos. São um pequeno poder as ciências, porque não são reconhecidas por todos e por ser da natureza da ciência que só podem compreendê-la aqueles que em boa medida já a alcançaram. A fabricação, o fabrico de máquinas e outros instrumentos de guerra, enfim, as artes de utilidade pública são poder, porque facilitam a defesa e conferem vitória.
O valor de um homem, tal como o de todas as outras coisas, é seu preço, o “valor de troca” de seu poder. Não é algo absoluto, mas algo que depende da necessidade e do julgamento de outrem. Tal como nas outras coisas, também no homem não é o vendedor, mas o comprador quem determina o preço. O valor público de um homem, aquele que  lhe é atribuído pelo Estado, é o que os homens vulgarmente chamam dignidade.
Coisa diferente de seu valor é o merecimento de um homem, e também de seu mérito.
O mérito pressupõe um direito. A coisa merecida é devida por promessas. A isso voltarei a me referir mais adiante, quando falar dos contratos.

Capítulo 11 - Sobre as diferenças de costumes

Os costumes. As condições para a obediência a um poder comum

Entendo por costumes aquelas qualidades humanas que dizem respeito a uma vida em comum pacífica e harmoniosa. Para este fim, devemos ter em mente que a felicidade desta vida não consiste no repouso de um espírito satisfeito.
A felicidade é um contínuo progresso do desejo, de um objeto para outro, não sendo a obtenção do primeiro outra coisa senão o caminho para conseguir o segundo. Portanto, as ações voluntárias dos homens e as inclinações dos homens não tendem apenas para conseguir, senão também para garantir uma vida satisfeita, e diferem apenas quanto ao modo como surgem, em parte da diversidade das paixões em pessoas diversas,  em parte das diferenças no conhecimento e opinião que cada um tem das causas que produzem os efeitos desejados.
Todos os homens têm como tendência geral um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte. A causa disso é o fato de não se poder garantir o poder e os meios para viver bem que atualmente se possui sem adquirir mais ainda.
A disputa pela riqueza, a honra, o mando e outros poderes leva à luta, à inimizade e à guerra, porque o caminho seguido pelo competidor para realizar seu desejo consiste em matar, subjugar, suplantar ou repelir o outro.
Deleite sensual e desejo de conforto predispõem os homens para a obediência ao poder comum. O mesmo ocorre com o medo da morte e com o desejo de conhecimento e das artes da paz.

Capítulo 13  - Sobre a condição natural da humanidade relativamente à sua felicidade e miséria

Os homens são iguais por natureza. Causas da discórdia. A guerra de todos contra todos

Observa-se que a natureza fez os homens tão iguais, no que se refere às faculdades do corpo e do espírito, que, embora por vezes se encontre um homem visivelmente mais forte de corpo ou de espírito mais vivo do que outro, quando se considera o conjunto a diferença entre os homens não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com razão dela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar. No que diz respeito às faculdades do espírito encontro entre os homens uma igualdade ainda maior do que a igualdade de força.
Em geral, não há sinal mais claro de uma distribuição eqüitativa de alguma coisa do que o fato de todos estarem contentes com a parte que lhes coube. Desta igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de atingirmos nossos fins. Se dois homens desejam a mesma coisa, portanto, ao mesmo tempo em que é impossível ela ser gozada por ambos, eles se tornam inimigos.
Contra essa desconfiança de uns em relação aos outros nenhuma maneira de se garantir é tão razoável como a antecipação. Quer dizer, pela força ou pela astúcia subjugar todos os homens que puder, durante o tempo necessário para chegar ao momento em que não veja qualquer outro poder suficientemente grande para ameaçá-lo. Isso não é mais do que sua própria conservação exige, conforme é geralmente admitido. Esse aumento do domínio sobre os homens, sendo necessário para a conservação de cada um, deve ser por todos admitido, obviamente.
Finalmente, os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros quando não existe um poder capaz de manter a todos em respeito, pois cada um pretende que seu companheiro lhe atribua o mesmo valor que ele se atribui a si próprio e, na presença de todos os sinais de desprezo ou de subestimação, naturalmente se esforça por arrancar de seus contendores a atribuição de maior valor causando-lhe dano e, pelo exemplo, expandindo o dano sobre os demais.
Assim, na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia (guerra). Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória. A primeira leva os homens a atacar os outros visando lucro. A segunda, a segurança. A terceira, a reputação.
Torna-se manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de mantê-los a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra. Uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens.
Tudo aquilo, portanto, que é válido para um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, também é válido para o tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força e sua própria invenção. Em tal situação não há lugar para a indústria e todas as demais atividades produtivas do homem, pois seu fruto é incerto. Não há sociedade. E o que é pior do que tudo, há um constante temor e perigo de morte violenta. A vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta.
Pensa-se obviamente que nunca existiu tal tempo, nem uma condição de guerra como esta, e acredito que jamais tenha sido geralmente bem assim, no mundo inteiro. De qualquer forma, é fácil conceber qual seria o gênero de vida quando não havia poder comum a recear, por meio de que gênero de vida os homens que anteriormente viveram sob um governo pacífico costumam deixar-se cair numa guerra civil.
Da guerra de todos contra todos também isto é conseqüência: que nada pode ser injusto. As noções do bem e do mal, de justiça e injustiça, não podem ter lugar aí. Onde não há poder comum não há lei. Onde não há lei não há justiça. Na guerra, a força e a fraude são as duas virtudes principais. Outra conseqüência da mesma condição é que não há propriedade, domínio, distinção entre o meu e o teu. Pertence a cada homem só aquilo que ele é capaz de conseguir, e apenas enquanto for capaz de conservá-lo. É esta a miserável condição em que o homem realmente se encontra, por obra da simples natureza. Todavia, com possibilidade de escapar a ela, que reside, parcialmente, nas paixões e em sua razão.
As paixões que levam os homens a preferir a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável e a esperança de consegui-las por meio do trabalho. A razão sugere adequadas normas de paz, em torno das quais os homens podem chegar a acordo. Essas normas são aquelas a que, por outro turno, se chama            de leis da natureza. 

Capítulo 14  - Sobre a primeira e a segunda leis naturais e sobre os contratos

O direito natural. A liberdade. A diferença entre direito e lei. A condição do homem.
Desistência e transferência de um direito. O contrato

O direito natural, que os autores geralmente chamam de jus naturale, é a liberdade que cada um possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua  própria natureza, ou seja, de sua vida. Conforme o significado próprio da palavra, por liberdade entende-se a ausência de impedimentos externos.
Lei naturallex naturalis é um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida, privá-lo dos meios necessários para preservá-la ou omitir aquilo que pensa poder contribuir melhor para preservá-la. Porque os que têm tratado desse assunto costumam confundir jus e lex, o direito e a lei, é necessário distingui-los um do outro. O direito consiste na liberdade de fazer ou de omitir, ao passo que a lei determina ou obriga a uma dessas coisas. De sorte que a lei e o direito se distinguem tanto como a obrigação e a liberdade, as quais são incompatíveis quando se referem à mesma matéria.
Dado que a condição do homem é uma condição de guerra de todos contra todos, segue-se que em tal condição todo homem tem direito a todas as coisas, incluindo os corpos dos outros. É um preceito ou regra geral da razão que todo homem deve se esforçar pela paz. A primeira parte desta regra encerra a lei primeira e fundamental da natureza, que é procurar a paz, e segui-la. A segunda resume o direito natural, isto é, cuidar da própria defesa por todos os meios possíveis.
Desta lei fundamental da natureza, que ordena a todos os homens que procurem a paz, deriva esta segunda lei. Que um homem concorde, conjuntamente com os outros e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo.
Desiste-se de um direito apenas renunciando a ele ou transferindo-o para outrem.
Quando transfere seu direito ou a ele renuncia, alguém o faz em consideração a outro direito que reciprocamente lhe foi transferido ou a qualquer outro bem que daí espera. É um ato voluntário. O objetivo de todos os atos voluntários dos homens é algum bem para si mesmos. Segue-se que há alguns direitos que é impossível abandonar ou transferir.
Ninguém pode renunciar ao direito de defesa contra  quem o ataque com violência para tirar-lhe a vida, dado que é impossível admitir que através disso vise a algum benefício próprio. Afinal, o motivo e o fim devido ao qual se introduz essa renúncia e transferência do direito não é mais que a segurança da pessoa de cada um quanto à sua vida e quanto aos meios de preservá-la de maneira tal que não acabe se cansando dela.
Contrato é a transferência mútua de direitos. Em contratos, o direito não é transmitido apenas quando as palavras são do tempo presente ou passado, mas principalmente quando são do futuro, porque todo contrato é uma translação ou troca mútua de direitos. Quem cumpre primeiro sua parte num contrato merece o que há de vir a receber do cumprimento da parte do outro, o qual tem como devido.
Ao se fazer um pacto em que ninguém cumpre imediatamente sua parte e uns confiam nos outros, na condição de simples natureza que é uma condição de guerra de todos contra todos, a menor suspeita razoável torna nulo esse pacto. Se houver, entretanto, um poder comum situado acima dos contratantes, com direito e força suficiente para impor seu cumprimento, ele não é nulo. Aquele que cumpre primeiro não tem qualquer garantia de que o outro também cumprirá depois, porque os vínculos das palavras são demasiado fracos para refrear a ambição, a avareza, a cólera e outras paixões dos homens, caso não haja o medo de algum poder coercitivo. Que, na condição de simples natureza, onde os homens são todos iguais e juízes de seus próprios temores, é impossível se supor.
Num Estado civil, que tem estabelecido um poder para coagir aqueles que de outra maneira violarem sua fé, esse temor deixa de ser razoável. Aquele que segundo o pacto deve cumprir primeiro é obrigado a fazê-lo.
Sem mútua aceitação não há pacto possível. O conteúdo ou objeto de um pacto é sempre alguma coisa sujeita a deliberação – porque fazer o pacto é um ato de vontade, quer dizer, o último ato da deliberação —, portanto sempre se entende ser alguma coisa futura e que é considerada possível de cumprir por aquele que firma o pacto.
Ficam liberados de seus pactos os homens de duas maneiras: cumprindo ou sendo perdoados. O cumprimento é o fim natural da obrigação e o perdão é a restituição da liberdade, constituindo a retransferência daquele direito em que consistia a obrigação.
O que eu compactuar legitimamente não posso romper na legalidade. Um pacto em que eu me comprometa a não me defender na mesma medida é sempre nulo. Conforme acima mostrei, ninguém pode transferir ou renunciar a seu direito de evitar a morte, ferimentos ou o cárcere, que é o único fim da renúncia ao direito.
É igualmente inválido um pacto no sentido de alguém se acusar a si mesmo, sem garantia de perdão.
Posto que a força das palavras conforme acima assinalei é demasiado fraca para obrigar os homens a cumprir seus pactos, só é possível conceber, na natureza do homem, dois meios de reforçá-la. Estes são o medo das conseqüências de faltar à palavra dada ou o orgulho de aparentar não precisar faltar a ela. Este último é uma generosidade que é demasiado raro encontrar para se poder contar com ela, sobretudo entre aqueles que procuram a riqueza, a autoridade ou os prazeres sensuais, ou seja, a maior parte da humanidade.
Uma paixão com que se pode contar é o medo, que pode ter dois objetivos extremamente gerais: um é o poder dos espíritos invisíveis e o outro é o poder dos homens que dessa maneira se pode ofender. Antes da época da sociedade civil, em caso de interrupção desta pela guerra, não há nada que seja capaz de reforçar qualquer pacto de paz a que se tenha concordado contra as tentações da avareza, da ambição, da concupiscência  ou outro desejo forte, a não ser o medo daquele poder invisível que todos veneram como Deus, na qualidade de vingador da sua perfídia.

Capítulo 15 - Sobre outras leis da natureza

Especialmente a terceira:a Lei da Justiça

Daquela lei natural em que somos obrigados a transferir aos outros aqueles direitos que, ao serem conservados, impedem a paz da humanidade, segue-se uma terceira: os homens têm de cumprir os pactos que celebrarem. Sem esta lei os pactos seriam vãos e não passariam de palavras vazias.
É esta a quarta lei natural, que pode ser assim formulada: “Quem recebeu benefício de outro, por simples graça, se esforce para que o doador não venha a ter motivo razoável para arrepender-se de sua boa vontade”.
A quinta lei natural é a complacência, isto é: “Que cada um se esforce por acomodar-se com os outros”.
A sexta lei natural é: “Como garantia do tempo futuro se perdoem as ofensas passadas àqueles que se arrependam e o desejem”.
A sétima lei é: “Na vingança – isto é, retribuição do mal com o mal – os homens não dêem importância ao mal passado, mas só importância ao bem futuro”.
Dado que todos os sinais de ódio ou desprezo tendem a provocar luta, a ponto de a maior parte dos homens preferir arriscar a vida a ficar sem vingança, podemos formular em oitavo lugar, como lei natural, o seguinte preceito: “Ninguém, por atos, palavras, atitude ou gesto, declare ódio ou desprezo pelo outro”.
Como nona lei natural, proponho esta: “Cada homem reconheça os outros como seus iguais por natureza”. Desta lei depende esta outra: “Ao se iniciarem as condições de paz ninguém pretenda reservar para si qualquer direito que não aceite seja também reservado para qualquer dos outros”.
Se a alguém for confiado servir de juiz entre dois homens, é um preceito da lei natural que trate a ambos eqüitativamente. Sem isso as controvérsias entre os homens só podem ser decididas pela guerra.
Deriva desta uma outra lei: “As coisas que não podem ser divididas, que sejam gozadas em comum, se assim puder ser. Se a quantidade da coisa o permitir, sem limite. Se não permitir, proporcionalmente ao número daqueles que a ela têm direito”.
Há coisas que não podem ser divididas, e tampouco gozadas em comum. Para esses casos, a lei natural prescreve e a eqüidade orienta: “o direito absoluto ou, então, se o uso for alternado, a primeira posse deve ser determinada por sorteio”. Aquelas coisas que não podem ser gozadas em comum nem divididas devem ser adjudicadas ao primeiro possuidor.
É também uma lei natural: “A todos aqueles que servem de mediadores para a paz seja concedido salvo-conduto”. Porque a lei que ordena a paz, como finalidade, ordena a intercessão, como meio.
Esta dedução das leis naturais é demasiado sutil para ser apreciada por todos os homens. Apesar disso, para não permitir que alguém seja desculpado, todas elas foram sintetizadas em resumo acessível e inteligível, mesmo para os menos capazes. Esse resumo é: “Faça aos outros o que gostaria que fizessem a ti”.

Parte II - Do Estado

Capítulo 17- Sobre as causas, geração e  definição de um Estado

O Estado tem por finalidade garantir a segurança pessoal

O fim último dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros) para introduzir restrições sobre si mesmos, sob as quais os vemos viver em Estados, é a sua própria preservação é a conseqüência necessária das paixões naturais dos homens, quando não há um poder visível capaz de os manter em respeito, forçando-os, por medo de castigo, ao cumprimento de seus pactos e ao respeito àquelas leis naturais que foram expostas nos capítulos quatorze e quinze.
As leis naturais – como a justiça, a eqüidade, em resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam – por si mesmas, na ausência do temor de algum poder capaz de levá-las a ser respeitadas, são contrárias a nossas paixões naturais. Os pactos, sem a força, não passam de palavras sem substância para dar qualquer segurança a alguém.
Em havendo grande multidão, se as ações de cada um dos que a compõem forem determinadas segundo o juízo individual e os apetites individuais de cada um, não poderá se esperar que ela seja capaz de dar proteção a ninguém, seja contra o inimigo comum, seja contra as injúrias feitas uns aos outros. Divergindo em opinião quanto ao melhor uso e aplicação da força, não se ajudam, mas se atrapalham uns aos outros.
A única forma de constituir um poder comum, capaz de defender a comunidade das invasões dos estrangeiros e das injúrias dos próprios concidadãos, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente, é conferir toda a força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade.
Isso é mais que consentimento ou concórdia, pois trata-se de um pacto de cada homem com todos os homens, de modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: “Cedo e transfiro meu direito de governar a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de que transfira a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isso, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, do latim Civita.
Esta é a geração daquele enorme Leviatã, ou antes – com toda reverência – daquele Deus mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus imortal, nossa paz e defesa.
É nele que consiste a essência do Estado, que pode ser assim definida: “Uma grande multidão institui a uma pessoa, mediante pactos recíprocos uns com os outros, para em nome de cada um como autora poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum”.
Soberano é aquele que representa essa pessoa. Dele se diz que possui poder absoluto. Todos os demais são súditos.

Capítulo 21 - Sobre a liberdade dos súditos

O que é a liberdade. Liberdade e necessidade

Liberdade significa, em sentido próprio, a ausência de oposição, entendendo por oposição os impedimentos externos do movimento.
De conformidade com esse significado próprio e geralmente aceito da palavra, um homem livre é aquele que não é impedido de fazer o que tem vontade de fazer, naquilo que é capaz de fazer. De maneira geral, todos os atos praticados pelo homem no Estado, por medo da lei, são ações que seus autores têm a liberdade de praticar.
São compatíveis a liberdade e a necessidade. Posto que todos os atos da vontade de todo homem, assim como todo desejo e inclinação, derivam de alguma causa, e essa de uma outra causa, numa cadeia contínua, cujo primeiro elo está na mão de Deus, a primeira de todas as causas, elas derivam também da necessidade.
Tendo em vista conseguir a paz e através disso a sua própria conservação, os homens criaram um homem artificial, ao qual chamamos Estado, assim também criaram cadeias artificiais, chamadas leis civis, as quais eles mesmos, mediante pactos mútuos, prenderam uma das pontas à boca daquele homem ou assembléia a quem confiaram o poder soberano e a outra ponta a seus próprios ouvidos. Ainda que esses laços por sua própria natureza sejam fracos, é no entanto possível mantê-los, devido ao perigo, se não pelas dificuldades de rompê-los.
Unicamente em relação a esses laços é que vou falar da liberdade dos súditos. Posto que em nenhum Estado do mundo foram estabelecidas regras suficientes para regular todas as ações e palavras dos homens — o que é uma coisa impossível —, segue-se necessariamente que em todas as espécies de ações não previstas pelas leis os  homens têm liberdade de fazer o que a razão de cada um sugerir como o mais favorável a seu interesse. A liberdade dos súditos, portanto, está apenas naquelas coisas que, ao regular suas ações, o soberano permitiu.
Todavia, não devemos concluir que com essa liberdade fica abolido ou limitado o poder soberano de vida e de morte. Cada súdito é autor de todos os atos praticados pelo soberano, de modo que a este nunca falta o direito seja ao que for, a não ser na medida em que ele próprio é súdito de Deus e, nesse sentido, obrigado a respeitar as leis naturais.
A liberdade na qual se encontram tantas e tão honrosas referências nas obras de história e filosofia dos antigos gregos e romanos, bem como nos escritos e discursos dos que deles receberam todo o seu saber em matéria de política, não é a liberdade dos indivíduos, porém a liberdade dos Estados.
É fácil os homens se deixarem iludir pelo significativo nome de liberdade e, por falta de capacidade de distinguir, tomarem por herança pessoal e direito inato seu aquilo que é apenas direito do Estado. No ocidente, costumamos receber nossas opiniões relativas à instituição e aos direitos do Estado de Aristóteles, Cícero e outros autores, gregos e romanos, que viviam em Estados populares e em vez de fazerem derivar esses direitos dos princípios da natureza os transcreviam para seus livros a partir da prática de seus próprios Estados.
Quanto à verdadeira liberdade dos súditos, ou seja, das coisas que, embora ordenadas pelo soberano, não obstante eles podem sem injustiça recusar-se a fazer, é preciso examinar quais são os direitos que transferimos no momento em que criamos o Estado. Em outras palavras, qual a liberdade que a nós mesmos negamos, ao reconhecer todas as ações sem exceção do homem ou assembléia de quem fazemos nosso soberano. Portanto, todo súdito tem liberdade em todas aquelas coisas cujo direito não pode ser transferido por um pacto.
Não se tem liberdade de resistir à força do Estado em defesa de outrem, seja culpado ou inocente. Essa liberdade priva a soberania dos meios para proteger-nos, sendo, portanto, destrutiva da própria essência do Estado. Com respeito às outras liberdades, dependem do silêncio da lei.
A obrigação dos súditos para com o soberano dura enquanto e apenas enquanto dura também o poder mediante o qual ele é capaz de protegê-los. O direito que por natureza os homens têm de defender-se a si mesmos não pode ser abandonado através de pacto algum.
A soberania é a alma do Estado. Uma vez separada do corpo, os membros deixam de receber dela seu movimento.
A finalidade da obediência é a proteção. Se um monarca renunciar à soberania, tanto para si mesmo como para seus herdeiros, os súditos voltam à absoluta liberdade natural.

Capítulo 29 - Sobre as coisas que enfraquecem ou levam à dissolução de um Estado

As imperfeições do Estado e o poder do soberano

Conquanto nada que os mortais façam possa ser imortal, mesmo assim, se os homens se servissem da razão da mesma forma como fingem fazê-lo, podiam pelo menos evitar que, por males internos, seus Estados perecessem.
Entre as enfermidades de um Estado, portanto, incluirei em primeiro lugar aquelas que têm origem numa instituição imperfeita.
Uma das enfermidades é essa: para obter um reino, um homem contenta-se muitas vezes com menos poder do que é necessário para a paz e a defesa do Estado. Então, quando o exercício do poder é assumido para salvação pública tem a aparência de um ato injusto, que predispõe um grande número de homens — quando a ocasião se apresenta para a rebelião.
Em segundo lugar, de um Estado examinarei as doenças que derivam do veneno das doutrinas sediciosas, uma das quais é: “Todo indivíduo particular é juiz das boas e más ações”. Na condição de simples natureza isso é verdade, pois não existem leis civis. Também o é sob o governo civil nos casos que não estão determinados pela lei. Não sendo assim, todavia, é evidente que a medida das boas e das más ações é a lei civil.
Incompatível com a sociedade civil é a doutrina de que é pecado o que alguém fizer contra sua consciência, porque dependente do pressuposto de que o homem é juiz do bem e do mal. Muito embora aquele que não está sujeito à lei civil peque em tudo o que fizer contra sua consciência, contudo isso não acontece com aquele que vive num Estado, por-          que a lei é a consciência pública, pela qual já aceitou ser conduzido. No meio de uma tal diversidade de consciências particulares, que não passam de opiniões particulares,              de outro modo, o Estado tem necessariamente de ser perturbado, e ninguém ousa obedecer ao poder soberano senão na medida em que isso se lhe afigurar bom a seus próprios olhos.
Incompatível com a natureza do Estado é uma quarta opinião de que o detentor do poder soberano está sujeito às leis civis. É certo que todos os soberanos estão sujeitos às leis naturais, porque tais leis são divinas e não podem ser revogadas por nenhum homem ou Estado. Porém, o soberano não está sujeito àquelas leis que ele próprio, ou melhor, que o Estado fez. Estar sujeito a leis é estar sujeito ao Estado, quer dizer, ao soberano representante, isto é, a si próprio, o que não é sujeição, mas liberdade em relação às leis.
A quinta doutrina com tendência para a dissolução do Estado é que todo indivíduo particular tem propriedade absoluta de seus bens, a ponto de excluir o direito do soberano. Na verdade, todo homem tem uma propriedade que exclui o direito de qualquer outro súdito. Tem-na apenas devido ao poder soberano, sem cuja proteção qualquer outro homem à mesma coisa teria igual direito. Se o direito do soberano, todavia, for também excluído, ele não poderá desempenhar o cargo em que o colocaram, o qual consiste em defendê-los dos inimigos externos e dos ataques uns dos outros, e deixará de haver Estado, obviamente.
Há uma sexta doutrina, aberta e diretamente contrária à essência do Estado, que diz: “O poder soberano pode ser dividido”. Em que consiste  dividir o poder de um Estado senão em dissolvê-lo, uma vez que os poderes divididos se destroem mutuamente uns aos outros?
Tenho me referido àquelas doenças do Estado que representam um perigo maior e mais premente. Há outras não tão graves que convém, contudo, observar. [Me referirei apenas a uma delas] Em primeiro lugar, a dificuldade de conseguir dinheiro para os gastos necessários do Estado, primordialmente em vésperas de guerra. Esta dificuldade surge da opinião de que todo súdito tem em suas terras e bens uma propriedade exclusiva do direito do soberano e para uso do soberano.
Finalizando, quando numa guerra externa ou intestina os inimigos obtêm vitória final, a ponto de — não se mantendo mais em campo as forças do Estado — não haver mais proteção dos súditos leais, então está o Estado dissolvido. Nesse caso, todo homem tem liberdade de proteger-se a si próprio por aqueles meios que sua prudência lhe sugerir. O soberano, pois, é a alma pública, que dá vida e movimento ao Estado, a qual, expirando, os membros deixam de ser governados por ela tal como a carcaça do homem quando se separa de sua alma — posto que imortal. Muito embora o direito de um monarca soberano não possa ser extinto pelo ato de outro, eis que a obrigação dos membros pode. Quando a obtém, fica obrigado sem pretensão fraudulenta de se ter submetido por medo a defender sua proteção enquanto for capaz. Quando, todavia, o poder de uma assembléia é suprimido, o direito desta desaparece por completo, já que a própria assembléia fica extinta e, obviamente, não há qualquer possibilidade de a soberania reaparecer.





Capítulo 30 - A respeito do cargo do soberano representante

A segurança do povo. A justificativa do contrato social

Seja em uma monarquia ou em uma assembléia, o cargo de soberano consiste no objetivo para o qual lhe foi confiado o soberano poder, principalmente para obtenção da segurança do povo, poder a que está obrigado pela lei natural e do qual tem de prestar contas a Deus, o autor desta lei, e a mais ninguém além dele. Não entendemos aqui, por segurança, uma simples preservação, mas também todas as outras comodidades da vida que todo homem, por um trabalho legítimo, sem perigo ou inconveniente do Estado, adquire para si próprio.
Esta é a justificativa para um contrato social, que é a base natural e racional do Estado soberano, como o conhecemos. Baseia-se em um acordo prudente entre os indivíduos, envolvendo a transferência de direitos a uma terceira pessoa, isto é, ao soberano, cuja tarefa é prover eqüitativamente a segurança de todos.