quinta-feira, 28 de abril de 2011

Pensamento e Revolta: O Engajamento Político em tempos de Alienação Pessimismo

por Paulo Jonas de Lima Piva

A alienação e o pessimismo são dois componentes preponderantes na atual conjuntura brasileira, o que torna o nosso contexto histórico bastante desanimador do ponto de vista do engajamento político. Como ser um filósofo consciente e engajado num Brasil frustrado com os mensalões e com a resignação neoliberal do governo Lula e do principal partido da esquerda, o PT? O conceito de revolta de Albert Camus, a fórmula do “agir sem esperança”, de Jean-Paul Sartre, e a palavra de ordem gramsciana “pessimismo da inteligência, otimismo da vontade” talvez lancem alguma luz sobre essa questão ética crucial para os pensadores que não se satisfazem com a reflexão e a crítica desvencilhadas de uma práxis transformadora.
De um encontro que tem como tema “Filosofia e Engajamento”  deveríamos esperar um formato e um conteúdo diferentes das corriqueiras reuniões acadêmicas da comunidade filosófica brasileira. Em vez das enfadonhas comunicações e palestras exegéticas centradas na história da filosofia, marcadas geralmente por técnicas e herméticas exposições sobre a “rebimboca da parafuseta” no livro X, parágrafo Y, do célebre Fulano de Tal que viveu no século Z, o anúncio de um evento dessa natureza gera a expectativa em alguns de que os eixos dos debates serão os diagnósticos de conjuntura voltados para propostas de intervenções na realidade. Portanto, tratar-se-ia de um encontro sobre a filosofia da práxis.
E qual deveria ser o objetivo principal de um encontro sobre filosofia da práxis? Em termos sartreanos, abordar e analisar o “homem real no meio do mundo real” (SARTRE, 1960, p.30). Assim sendo, esse encontro deveria privilegiar não a história da filosofia, mas sim o hic et nunc, o vir a ser da nossa efetividade.   
Mas o que seria um homem real imerso num mundo real? O que está por detrás dessa pretensão de um pensamento que deseja interpretar a realidade para transformá-la?
Num primeiro momento, pensar “o homem real no meio do mundo real” significa pensar um indivíduo de carne e osso, classe social e RG, situado num determinado momento histórico em uma certa localização geográfica e cultural. E como hoje nos encontramos reunidos em Curitiba, em 25 de novembro de 2005, pensarmos esse homem real imerso num mundo real é concebermos o homem concreto e cotidiano numa condição de mercado sem rédeas, de ofensiva do imperialismo norte americano, de frustração com as mudanças radicais que o governo Lula não realizou, de falência do PT, de poder inimaginável da mídia, de forte presença do narcotráfico na sociedade, de histeria futebolística e sexual, de epidemia neopentecostal e carismática, de “ONGuização” das mazelas sociais, entre outros componentes da realidade não contemplados pela nossa filosofia universitária de departamento francês de ultramar. Por outro lado é pensarmos também esse mesmo indivíduo inserido num contexto de resistência promovida pelo nacionalismo de Hugo Chavez na Venezuela, por exemplo, ou de consolidação do MST como referência de movimento popular combativo. A propósito, a experiência de nosso convívio acadêmico configurado conforme os moldes goldschmidtiano e gueroultiano tem nos ensinado que história da filosofia demais aliena. Poderíamos dizer, num certo sentido, que a dedicação exclusiva à pesquisa e ao ensino de filosofia entendida unicamente como história da filosofia, isso faz mal à compreensão da realidade. E alienação aqui entendamos na sua acepção mais elementar, ou seja, de perda da consciência da realidade social, política e econômica do momento em que se vive.
Todos nós, filósofos profissionais, já parimos ou estamos gerando dissertações ou teses. E conhecemos, portanto, os limites e os sacrifícios que tal trabalho impõe e exige. É comum encontrarmos colegas que são grandes eruditos em Aristóteles, Espinosa, Kant, Nietzsche e até no próprio marxismo, que conhecem quase tudo o que os seus principais comentadores publicaram. Contudo, quando lhes indagamos acerca de qualquer fato concernente ao homem real imerso no mundo real, simplesmente eles não demonstram em suas respostas o mesmo brilho com que tratam os seus objetos de pesquisa. Tecem considerações não mais críticas ou menos superficiais do que diria uma pessoa do chamado “senso comum”. Em alguns casos, a alienação de nossos colegas – chamo isso de alienação filosófica – que se reificaram com a mecânica e burocrática vida acadêmica ou se resignaram ao modelo e ao ditame goldschmidtiano de que só podemos nos contentar com a condição de historiadores da filosofia, de que para filosofar é necessário que sejamos quase que superdotados, a alienação desses nossos colegas especialistas é tanta que, se lhes perguntarmos, por exemplo, o que estão achando do comportamento de Chavez na Venezuela, é possível que este seja confundido com o personagem mexicano do seriado infantil da emissora de tevê de Silvio Santos! Parafraseando um certo best-seller da era Jostein Gardeen, talvez precisemos de menos Crítica da razão pura e Assim falou Zaratrusta e mais Caros Amigos e Brasil de Fato. Dito de outro modo, não podemos esquecer que muitos de nós somos professores universitários de filosofia. E se quisermos de fato ser intelectuais engajados, de fazermos valer o vínculo entre filosofia e atitude, é necessário iniciarmos uma mudança significativa já pelas nossas próprias posturas acadêmicas.
É óbvio que o estudo sério e consistente da história da filosofia é fundamental. Não se trata aqui em absoluto de preconizar o abandono e o combate ao estudo sistemático da história da filosofia. Entretanto, não podemos reduzir a nossa reflexão a comentários e exegeses de obras. Felizmente, muitos entre nós estão rompendo o cerco da “comentariologia” .  É o caso de Paulo Eduardo Arantes - autor dos quase indecifráveis Dicionário de bolso do almanaque philosophico zero à esquerda e de Zero à esquerda, uma compilação de ensaios lançado pela coleção “Baderna” _ e Marilena Chauí. Esta, como sabemos, não se limitou a comentar Merleau Ponty e Espinosa. Recentemente, pagou caro por isso no episódio covarde do “silêncio dos intelectuais” alimentado pela grande imprensa conservadora em meio às denúncias contra o governo Lula. Trata-se, sem dúvida, de dois intelectuais rigorosamente engajados. Paulo Arantes, por exemplo, participou ativamente da fundação do PSOL, o mais novo partido da esquerda revolucionária brasileira. Quanto a Marilena Chauí, sua história como teórica do PT é notória.
Livrarmos-nos dessa ideologia estruturalista é um passo importante para que se torne um pouco mais palpável nos dias de hoje esse personagem de características quixotescas que é o intelectual engajado. Outra medida necessária para facilitar a entrada desse personagem no cotidiano dos injustiçados e oprimidos é a mudança da linguagem por meio do qual o pensamento crítico é expresso. Para elevarmos as consciências das massas é preciso antes sermos ouvidos e sobretudo entendidos. E para que essa regra básica do intelectual engajado seja cumprida, nada melhor do que o filósofo abandonar o “filosofês”. Diderot  e Voltaire fizeram isso no século XVIII escrevendo romances, contos e peças teatrais com uma linguagem próxima dos mercados e tavernas. Marx e Sartre são exemplos mais recentes de como é possível filosofar para o grande público, isto é, com clareza e ao mesmo tempo mantendo o rigor do pensamento. Nesse aspecto, O Manifesto do Partido Comunista e O existencialismo é um humanismo são modelares. No caso de Sartre, em específico, poderíamos dizer dele acerca do seu romance filosófico A náusea, bem como de suas conferências no Japão intituladas Em defesa dos intelectuais. Em suma, o projeto de uma filosofia engajada só faz sentido se o filósofo dialogar com as massas, portanto, ser entendido e interagir com interlocutores para além dos guetos de especialistas. Para isso, adequar o dialeto filosófico ao mundo dos não-filósofos é vital.
Mas não basta mudarmos nossa atitude em relação à tradição estruturalista e à linguagem técnica arrevesada. Um dos maiores empecilhos ao engajamento do filósofo talvez seja o preconceito aristocrático de nossa categoria, ou seja, a idéia de que a filosofia tem de ser tratada só por técnicos e especialistas, e guardada numa redoma institucional para protegê-la do risco da deturpação, da banalização e da massificação, como sustentam alguns cães de guarda. Enfim, os espaços para aproximar a reflexão crítica do povo, ou seja, aproximar a filosofia de uma práxis potencial, existem, e cabe a nós, filósofos que desejam se engajar, tirarmos proveito disso tendo em vista a nossa causa libertária. O que não é mais aceitável é nos satisfazermos com encontros acadêmicos anuais sobre filosofia...
Penetremos agora na nebulosa e desanimadora conjuntura política deste mundo real no qual os cafés filosóficos e as casas do saber estão na moda. E façamos isso com uma indagação que deveria estar na ordem do dia: a quem interessa o discurso do pessimismo político? Esta pergunta, aliás, foi sugerida pelo jornalista José Arbex Junior num artigo da edição de número 103, da revista Caros Amigos intitulado “Deixemos o pessimismo para dias melhores”. E o que diz e em que consiste concretamente o discurso do pessimismo político? Trata-se da avaliação reducionista e simplista de que “político é tudo igual”, que “partido político é tudo a mesma coisa”, que “o poder corrompe”, enfim, que “o jogo político é assim mesmo, sempre foi, e jamais será diferente”. Tal discurso, é importante notar, vem sendo endossado, ora de maneira implícita, ora escancarada, pela grande mídia burguesa. E, como sabemos, essa difusão do pessimismo em relação à prática política desses órgãos da imprensa-empresa não é gratuita. Contudo, razões para aceitar esse discurso, infelizmente, existem aos montes. Por exemplo, que não há mais o sol flamejante da messiânica revolução proletária e socialista no horizonte da história; que o governo Lula, uma das últimas esperanças do processo democrático brasileiro, está sendo um fiasco e, por conseguinte, uma desastrosa decepção para grande parte dos trabalhadores brasileiros; que os valores neoliberais estão cada vez mais intoxicando via aparelhos ideológicos as consciências das massas; que essas massas sem perspectivas e desesperadas estão encontrando na religião e em doutrinas equivalentes um anestésico para suas angústias; que fóruns sociais mundiais são organizados e nada de prático acontece para reverter os lamentáveis quadros de miséria e marginalidade. Em suma, não dá prá não ser pessimista nos dias de hoje. Pessimismo na atual conjuntura soa como sinônimo de realismo e lucidez. E mesmo com a existência do MST, dos fóruns sociais, dos zapatistas e até mesmo de líderes como Hugo Chavez. O fato é que quem ganha com o pessimismo são sem dúvida os setores reacionários da sociedade. Portanto, trata-se de uma ideologia conservadora que precisa ser combatida, porém não com um otimismo visionário e messiânico, mas por um pensamento radical e lúcido.
Dentre as inúmeras razões que justificam o pessimismo em relação à política uma delas pode ser o apelo à esperança das massas, expediente, aliás, muito utilizado historicamente também pela esquerda. Trata-se decerto de uma energia vital para a mobilização e o enfrentamento político. Ora, a esperança é em grande medida um sentimento similar ao sentimento religioso, uma vez que envolve a fé e induz à ilusão do absoluto e do paraíso na Terra. Assim sendo, por mais paradoxal que pareça, a esperança não deve ser evocada para fomentar a ação política. A esperança, quando não realizada, torna-se frustração. E o que era vigor e ânimo converte-se em apatia. Do ponto de vista ideológico e político, tal fenômeno é desastroso, uma vez que afeta e mina mortalmente a mobilização e a organização dos setores explorados, que são os atores sociais que mais necessitam da ação política. A propósito, um engajamento político lúcido, isto é, sem ser movido pela esperança, seria viável? Uma militância política fundamentada num sólido compromisso ético que supere a tentação pessimista sem se deixar levar pelas ilusões ingênuas do otimismo humanista seria exeqüível?
Sartre, em 1945, na sua célebre conferência O Existencialismo é um humanismo, propôs uma fórmula que vai ao encontro – e de maneira muito persuasiva – a essa idéia de engajamento político lúcido. Trata-se da fórmula “agir sem esperança” (SARTRE, 1978, p.12), uma espécie de imperativo categórico existencialista do filósofo engajado. Sartre a explica: “Antes de mais, devo ligar-me por um compromisso e agir depois segundo a velha fórmula ‘para se atuar dispensa-se a esperança’. Não que isto quer dizer que eu não deva pertencer a um partido, mas que não terei ilusões e que farei o que puder. Por exemplo, se me pergunto: a coletivização enquanto tal realizar-se-á um dia? Sobre isso não sei nada, sei apenas que tudo o que estiver ao meu alcance para se realizar fá-lo-ei; fora disso, não posso confiar em nada (idem 1978,p.13).
Dito de outro modo, nesse engajamento político lúcido o filósofo substitui a esperança por um dever humanista, a fé e um sentimento por uma norma racional. Ele fará tudo o que estiver ao seu alcance conforme esse imperativo e impelido pela sua sensibilidade e seus valores. Não mais por ilusões engendradas pela esperança. Se por ventura, tudo o que este militante almeja fora alcançado, comemora-se; caso não se realize, não haverá decepções, abalos, tampouco desânimos, mas uma continuidade da luta. Tal raciocínio parece inteiramente compatível com a ética revolucionária expressa por Antônio Gramsci na seguinte e não menos modelar frase: “A palavra de ordem ‘pessimismo da inteligência e otimismo da vontade’ deve ser a palavra de ordem de todo comunista consciente” (Apud COUTINHO, 2000, p.7).
Em última instância, para um filósofo engajado com tais características o que importa é agir, intervir no processo histórico sem nada esperar. Assim sendo, a ação política com seus valores humanistas inerentes será um fim em si mesmo.
Referências:

ARBEX J., Deixemos o pessimismo para dias melhores. Caros Amigos, São Paulo, n. 103, p.14, out.2005.

CAMUS, A. O homem revoltado. Tradução de Valérie Rumjanek. Rio de Janeiro, RJ: Record, 1999

CIORAN, E. Silogismos da Amargura. Tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

COUTINHO, C.N. Contra a Corrente: ensaios sobre a democracia e socialismo. São Paulo: Cortez, 2000.

PALÁCIOS, G.A. De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio. Goiânia: UFG, 2004.

SARTE, J.P. O existencialismo é um humanismo. Tradução de Virgílio Ferreira. São Paulo, SP: Abril, 1978.

________, Critique de La raison dialectique. Paris: Gallimard, 1960.


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